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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão
(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão
(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



4 REFERÊNCIAS

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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão
(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O
que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão
, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E
talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão
(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



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ZILLY, Berthold. De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: Mauad / FAPERJ, 2001
Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão
(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão

(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão

(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



4 REFERÊNCIAS

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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão
(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O
núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian


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ABANDONO SOCIAL, INJUSTIÇA E ESQUECIMENTO: A IDENTIDADE NORDESTINA E O SERTÃO NAS OBRAS DE ANTÔNIO TORRES E GRACILIANO RAMOS


RESUMO: Tratando-se de um estudo de minorias, compararam-se as obras Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Essa Terra (1976), de Antônio Torres para compreender a opressão na identidade nordestina. Para tal, leram-se às teorias de representação em Hall (2006) e Cassirer (1992); o estudo literário Temposfuturos, de Reis (2012); o estudo sobre a ficção e história da seca em Scoville (2011); a definição de contracultura proposta por Pereira (1986); e, por fim, às questões identitárias em Torres, de Preto Souza (2019). Bebendo de imagens comuns à seca e à pobreza no cânone em Vidas Secas, a narrativa de Torres pode ser entendida como contracultura à medida que põe em xeque o sistema vigente e o quadro político do sertão no fim do século XX. Constatou-se que, enquanto Graciliano aposta no emudecimento e na seca, confluindo para a formação da mitologia nordestina e da denúncia da política corrupta e o abandono institucional, Torres destaca o esquecimento da identidade cultural do povo nordestino, dentre outros problemas sociais como a xenofobia e o exílio interno ligado a eles.
PALAVRAS-CHAVE: Sertão; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Nordestino.



1 INTRODUÇÃO


Não se ouve nem um pio Cadê Zé, cadê João Cadê água, cadê rio É ano de seca no sertão
Lá onde a vida se acaba Vive só quem tem razão
(Toquinho e Vinícius de Moraes)

O tema do abandono e da desigualdade social na canção de Toquinho e Vinícius de Moraes introduzido na epígrafe acima traduz o tom desse artigo, cujos objetos de estudo vão refletir sobre o esmagamento da identidade nordestina no Brasil. Publicadas nos anos de 1938 e 1976, as obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antônio Torres, estabelecem uma diferença de quase quatro décadas entre si. Nascida na década de 70, junto ao movimento contracultura no brasileiro, a narrativa de Torres vai resgatar a figura do sertão e o discurso nordestino. Essa Terra traz não somente os ecos de Vidas Secas, mas também a voz que abafa e estereotipa a identidade nordestina no sul do Brasil. Esse artigo, nesse sentido, permite uma exploração do universo nordestino pelos dois autores desde a composição dos títulos e linguagem de ambos os livros até a temática do sertão e da subjetividade marginalizada.
Ambas as obras destacam no título a vivência dos dois escritores, uma vivência subalternizada da identidade brasileira do nordestino. Sobre Vidas Secas “[...] temos a palavra “vida”, significativamente no plural. O adjetivo “secas” torna esse um dos títulos mais prolixos de Graciliano Ramos” (REIS, 2012, p.197). Não obstante, para Ramos, o jogo de palavras em “Vidas Secas” é representativo de um paradoxo, uma vez que ao expor duplos, permite a reflexão de uma forma de vida social e sistematicamente reprimida. “A sintaxe é também uma arma, não lhe parece? É meio de opressão. Assim pensando, fiz os meus últimos livros.” (RAMOS Apud CAMPOS REIS, 2012, p. 05).
Embora o paradoxo esteja presente no título de Essa Terra, ele opera no sentido que, embora, se relacione com os sertões e a seca, traz uma narrativa sem a seca propriamente dita. Desse modo, o título Essa Terra faz, primeiro, um resgate de Os Sertões (1985), de Euclides da Cunha, e em segundo, uma denúncia. O resgate está associado à paisagem aludida como abandonada, incivilizada e compreendida como o principal desafio do homem em Cunha. A denúncia localiza-se no teor segregador sugerido pelo título, remetendo ao esquecimento e a exclusão social do nordestino. A visão pessimista das obras expõe a cultura agonística e esmagadora que generaliza e inferioriza o nordestino. A narrativa torreana vai ser alicerçada por literaturas como Vidas Secas, em que existe uma descrição, e também um olhar para a governabilidade política da cultura. Essa tradução de Ramos em Torres sublinha, sobretudo, uma busca política e ideológica por inclusão, utilizando a narrativa como meio para pensar a (re)existência cultural da nordestinidade no Brasil do fim do século XX.


2 DISCUSSÕES TEÓRICAS

Etimologia do sertão, a contracultura e a identidade nordestina

Na primeira metade do século XX, entre muitos escritores modernos, é perceptível uma preocupação geral sobre o lugar da literatura. Essa preocupação explica-se devido ao potencial da literatura como formadora da consciência social, cultural e nacional. Por outro lado, sobre a relação entre a literatura e o nacional, é importante ressaltar a impressão negativista de alguns autores desse período: o adoecimento de Euclides da Cunha e o pessimismo de Ramos são sintomáticos dessa relação. A visão de Torres sobre a questão nacional, por sua vez, está relacionada ao fenômeno da globalização. Para o autor as histórias nacionais estão sendo atravessadas por um número enorme de histórias não locais e, por isso, vão deixando de ser consumidas progressivamente.

O imaginário global que nos chega o tempo todo está se impondo sobre o imaginário local, e como o local não faz parte do global, também não faz parte do imaginário nosso, da nação. A meu ver é isso, nós estamos consumindo o imaginário que vem de fora, porque nossa cabeça está sendo formatada toda para isso. (TORRES, 2016)

A preocupação de Torres, nesse sentido, é que as histórias locais sejam cada vez menos aprendidas em detrimento de outras, e que, o brasileiro saiba mais da história do estrangeiro do que de sua própria. O abafamento e a opressão do nordestino podem ser entendidos como mote para a escrita de Torres, que se desvencilha da descrição do sertão no aspecto paisagístico, apesar de não negá-la. Para entender o discurso de Torres é necessário identificar alguns elementos vitais em Vidas Secas.
Em relação à escrita, Vidas Secas se constitui por termos e léxicos regionais de tom áspero e silencioso, assim como se espera de uma região seca, árida e deserta. Esta decisão introduz características da fauna e da flora do polígono das secas no Sertão, região mais atacada pela seca no nordeste brasileiro. Alguns exemplos dessa linguagem são as ossadas de bois, os voos de urubus, os juazeiros e os animais endêmicos do ecossistema da caatinga. As descrições são breves, normalmente frases curtas inseridas nos parágrafos que acompanham as ações dos personagens. Sua linguagem é econômica e com poucos adjetivos, delineando a precisão da escrita que traduz a seca de uma região predominantemente afastada de grandes centros urbanos brasileiros.
Optando por uma linguagem provocativa e sentimental, Antônio Torres, percorre um caminho completamente diferente de Ramos. A ironia de Torres faz parte de seu repertório de estilos. Além disso, à medida que o foco narrativo e o narrador é trocado, uma mudança de tom é presentificada. Também apresenta léxicos que marcam a regionalidade, entre as palavras estão plantas locais, animais da região, nomes de estabelecimentos comerciais e palavras típicas que se referem à sexualidade. (Coelho et al., 2011). Por vezes, o texto flui jocoso e irônico, por vezes, sofrido, relutante e sem lapsos de humor. Os eventos são expressos através de flashbacks e fluxos de consciência.
Em relação à localização geográfica, Vidas Secas realiza um caminho literário que passa pela província (Caetés), pela zona rural (São Bernardo), urbana (Angústia) e tem fim no ambiente da caatinga. Supõe-se, com base nas condições climáticas, que os personagens estejam no semiárido, ambiente em que a natureza, de modo geral, domina o homem. O espaço é despovoado, fazendo com que a migração ocorra de acordo com a frequência da seca, indicada pela manifestação de medo nos personagens. Essa Terra, por outro lado, é uma narrativa migrante de dois irmãos, que ora fala a partir de Totonhim, em Junco, município do interior da Bahia, e ora, apresenta a vida de Nelo em São Paulo, com destaque a cena de agressão física nas margens do Rio Tietê.
O espaço do sertão como motivo para criação literária pode não ser novidade dentre o rol de escritores brasileiros. Contudo, identifica-se uma preocupação sobre o termo, uma vez que muito da aprendizagem do que é o sertão acontece através da literatura. Conforme geógrafos e historiadores estudados nesta pesquisa, o conceito de sertão, mesmo físico, exige uma especificação interdisciplinar e transcultural. De acordo com o geógrafo Filho (2011 p. 85), essa idealização homogênea sobre o sertão está reverberada até mesmo nos dicionários. Ao comparar o Dicionário Aurélio e o Dicionário Houaiss, ele revela a repetição homogênea e anacrônica do significado da palavra.

1.região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas. 2. Terreno coberto de mato, afastado do litoral. 3. A terra e a povoação do interior; o interior do país. 4. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos. (...).

Ao contrário do que se supunha, a palavra sertão possui origens pré-cabralianas. Segundo F. Silva (1950), a palavra “sertão” localiza-se duas vezes na carta de Caminha. Seu significado traduz a ideia de um locus situado longe da costa, ou sem arvoredo. No diário de Vasco da Gama, escrito em 1498, conforme a transcrição de Velho (1998, p.43), o sertão articula-se com a ideia de “interioridade”.

Na quarta-feira, 8 de novembro, enfim, lançamos âncora nesta baía, e aí permanecemos por oito dias, limpando os navios, consertando as velas e arranjando lenha. A quatro léguas desta angra, para o sudeste, estende-se um rio que vem de dentro do sertão (grifo nosso). A largura de sua foz é de um tiro de pedra (antiga medida de comprimento, equivalente a cerca de 40 m) e tem entre duas e três braças de profundidade. Chama-se rio de Santiago.

Ainda sobre a origem da palavra, Barroso (1947) definirá o sertão como uma vertente de “deserto grande” ou desertão, da forma latina desertus, ou seja, interior, coração das terras. Segundo o autor, a palavra tem origem no século XVI, designando regiões do interior de Portugal. Por outro lado, para F. Silva (1950), a palavra no Brasil derivaria de um antropônimo, dono de fazendas, Domingos Sertões. O escritor Euclides da Cunha imortalizaria a imagem mais frequentada a respeito do sertão nordestino com a obra Os Sertões (1988),

É uma paragem impressionadora. As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal coberto por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens. (CUNHA, 1988, p. 20)

O que fez Euclides da Cunha, então, foi realizar uma conexão do termo sertão com aquela paisagem particular. Em outra direção, o ponto de vista das ciências geográficas parece elucidar que, embora paisagens áridas e semi-áridas como aquela canonizada por Euclides da Cunha remetam a uma forma de sertão, esta não é a única. Assim, Filho (2011, p. 86) conclui que “o significado de “sertão” consagrado pelos usos se firmou [...] com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas.”.
Por outro lado, se a sinceridade de que fala Graciliano Ramos, no projeto de sua escrita literária, não se encontra na apreensão de uma estrutura pedagógica sobre a regionalidade brasileira, o sertão precisa ser compreendido de outra forma. Conforme Ferreira da Silva (2010, p. 142) “Para Graciliano, escrever não é qualquer coisa, é colocar a vida no papel, é trabalho e tem que ser sincero. Não basta ter só a técnica, esta sem a sinceridade não é nada.”. Apesar da ambientação e do espaço transitado pelos personagens, a representação do sertão na narrativa para autores como Antônio Torres e Graciliano Ramos parece sublinhar noções, acima de tudo, simbólicas. Especialmente no que diz respeito à cultura local, por se referir à imagem de um espaço brasileiro estereotipado por um desprogresso voluntário, predominantemente tomado pela natureza morta.
Com uma volta às preocupações regionais e à identidade cultural, Torres apega-se a uma forma de representação menos concreta, trazendo os personagens das margens, acorrentados invisivelmente às formas de vida e aos espaços opressores para o centro do debate nacional. A recordação de que, durante os anos 70, muitos foram os catalisadores da resistência à ditadura na identidade brasileira, direcionam para a importância de artistas como Torres, cujo projeto literário retrata a identidade brasileira e a temática de minoria.
Durante esse período, o Brasil era preenchido pela atmosfera ufanista da inauguração de estátuas, monumentos, estradas, pontes e viaduto, ofertas de trabalho em alta escala. Apesar da melhora de infraestrutura, o povo brasileiro tinha cada vez menos poder em fazer decisões. Contaminando escritores e artistas, esse cenário social promoveu a produção artística numa tentativa de reparação social para grupos em vulnerabilidade, criando essa atmosfera “contracultura”. Conforme Pereira, o termo pode designar “[...]certa forma de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente de caráter profundamente radical” (PEREIRA, 1986. p.20). Isto é, um diálogo mais honesto e democrático com as classes sociais, e para Torres, com a identidade brasileira. A questão da identidade cultural, no seu espectro sociológico, segundo Stuart Hall, pode ser importante para compreender as literaturas que abordem essas minorias.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós” contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.11)

Em outras palavras, os efeitos da contracultura são indissociáveis do campo literário e das artes produzidas desse contexto social. Sobretudo, devido às vítimas da repressão, segregação e opressão social. Lugar esse já habitado por Ramos, haja vista que “Vidas secas é escrito depois da experiência do autor nos cárceres do Estado Novo, experiência por ele mesmo julgada essencial para a elaboração do livro” (REIS, 2012, p.208). Subjaz desta perspectiva cultural o sertão destes objetos literários. Ameaçador, que assim como o homem, é posto em xeque por meio da materialidade histórica da violência: seca, racional e hierarquizada.
É por meio da violência e do preconceito da cidade que a memória de Nelo irrompe na narrativa de Torres, lembrança essa que ressalta o pai, a mãe, a infância e a família que formou em São Paulo. Ao explorar o imaginário do desenvolvimento social no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a sobrevivência e resistência da identidade nordestina em um nicho nacional hostil. As comparações na próxima sessão apontarão um discurso de esmagamento sociocultural justificado por poder, opressão e desigualdade.


Entre o Seco e o “Mijado”


Apesar das diferenças visíveis pela composição do espaço narrativo, existe algo sobre o sertão em Vidas Secas, de Ramos, muito íntimo em forma de ecos nas camadas textuais e personagens torreanos, em Essa Terra. Sobre os personagens, há harmonia principalmente no que concerne aos sentimentos relacionados à terra nordestina. É a pluralidade das expressões do sertão que permite despertar o imaginário nas histórias produzidas pelo inabitável habitado. O desumano ou não-humano se integram à identidade do nordeste, atravessados pelo berço das histórias do cangaço, pela jornada migratória a terras prometidas e pelas ficções de seres místicos e folclóricos ligados à região nordestina. É neste lugar que se encontrará o enraizamento daquilo que, para muitos escritores, poderia ser o reconhecido como verdadeiramente nacional. Conforme alguns estudiosos, as origens do sertão se sucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade de relacionar o atraso social à miscigenação, anexando-a socialmente ao sertanejo. De acordo com Ivana Gund (2006, p. 36)

O sertão, assim, ficou marcado, na literatura, como um lugar isolado, no interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza. Mas esse afastamento passou a ser considerado problemático, pois evitara a chegada da “luz da civilização”, do progresso. Cristalizara-se, assim, a imagem do sertão, a um só tempo, como locus representativo da nação – reduto das matrizes fundacionais – e região “vazia”, não somente por ser desértica, mas, sobretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as condições opressoras da vida do nordestino. Em Vidas Secas, desde o primeiro capítulo, “Mudança”, o aspecto migratório aparece sublinhado. A diáspora é engatilhada pelo efeito mortal da seca, que vai se arrastando sobre a caatinga, onde os rios encontram-se rachados, tornando o andar dolorido, as alpargatas dolorosas, atiçando a pressa de quem foge e a raiva de quem fica.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. (RAMOS, 2002, p. 3)

Nesse sentido, o autor realiza um retorno à paisagem quente, seca e dura do semiárido, reforçada pelo texto de Euclides da Cunha, sublinhando a ideia de interioridade e despovoamento comentada por Filho (2011). Quando o narrador comenta que “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se” (p. 3), ele sintetiza não apenas a vegetação, mas a miragem provocada pela fome, que ilustra o abandono social e as necessidades básicas das quais a família é vítima. Entre os sujeitos estaria a família nordestina de Fabiano.
O núcleo familiar é central na composição narrativa, uma vez que, muitas vezes, o capítulo compromete-se com a apresentação psicológica de cada um. Em Vidas Secas, entre os personagens estão as crianças, o Menino mais Velho e o Menino mais Novo; a mãe, Sinhá Vitória, o pai jagunço Fabiano; os animais, Baleia e o Papagaio; e a autoridade do centro urbano mais próximo, o Soldado Amarelo. Ramos fará uso de imagens como a escassez e a animalização para expressar a extremidade da situação dos sujeitos do nordeste.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. (RAMOS, 2002, p. 6)

A migração também se faz presente em Essa Terra, mas dessa vez, não é a família inteira que se desloca. Enquanto Nélio migra para a cidade grande ainda novo, o resto da família fica em Junco. A preferência da mãe por Nelo explica justamente a possibilidade que via no filho em provê-los mesmo de longe e quem sabe dar a eles condições melhores. De acordo com Rogério Gonçalves, a relação entre Nelo e Totonhim, seu irmão, pode ser compreendido pela (não) aceitação do seu destino diaspórico.

“[...] em contraponto à imagem de coragem e de sucesso que alimentam de Nelo. Totonhim é apresentado como figura contrastiva, antípoda psicológico e social de Nelo, trazendo em si as qualificações de fracassado e acomodado” (GONÇALVES, 2011, p. 2).

Em meio à expectativa e frustração que Essa Terra ressalta o impacto da migração, da vida urbana e da cidade na subjetividade do brasileiro nordestino. A preocupação com a cultura “local” pelo escritor constitui outras de suas obras literárias. Para o autor, a discussão do embate dos espaços brasileiros é uma forma de expressão e reflexão sobre a identidade cultural. Como destaca Preto-Souza (2019, p.4)

O propósito de seus projetos literários focaliza na arquitetura de temáticas preocupadas com o embate cultural. O autor utiliza o mito e as imagens do herói para adentrar o universo literário e o aspecto identitário de seus personagens. Os conflitos presentes em suas narrativas ressaltam tensões que sobrepõem ou abafam as identidades locais ou nativas. Essas forças simbólicas se apresentam de duas formas em suas histórias. A primeira está relacionada às narrativas produzidas pelo sujeito tipicamente brasileiro, constituído pela cultura popular e pelos saberes locais. Já a segunda consiste em uma tensão de valores impostos por sistemas estrangeiros, fenômenos globais ou externos, sob a forma de uma narrativa cultural.

Esse é o caso de Essa Terra e O cachorro e o Lobo (1997) em que Torres mergulha no tema do sertão, da solidão e da interioridade nordestina. Em Essa Terra, o autor conta a história do filho de uma família de nordestinos, cujo destino acredita ser sair de sua terra e ir ao encontro de melhores condições de vida. A ideia de que São Paulo trará frutos melhores do que aquele de Junco é um denominador comum no imaginário do morador do interior. Por outro lado, a história de Nélio expressa justamente que a cidade grande não é exatamente como ele e sua família imaginavam. E que o Nordestino, mesmo longe do interior continua sendo e sentindo-se o fracasso motivado pelo projeto político cultural.
Em Vidas Secas, a linguagem utilizada pelos membros da família passa por sons guturais, tão pouco eloquentes que até o papagaio, primeira vítima da narrativa, é mudo. O animal, às vezes, imita os latidos de Baleia, personagem que raciocina e compreende o mundo tanto quanto os humanos, numa aproximação que faz dela parte da família: “brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2002a, p. 85). Essa dicotomia entre “natureza” e “cultura” indica o sertão não como uma mera espacialidade, mas como carga simbólica que manifesta corporalidade na visão de vida que constitui este espaço. O fato de que a consciência é simbólica por natureza é um aspecto já sublinhado pelo pensamento de Ernst Cassirer.

[...] podemos inferir que a consciência do mundo, ou seja, a realidade, é representação, é significado, cuja forma que melhor explicita essa premissa é a linguagem [...] a linguagem é uma determinada direção fundamental de nossa ação espiritual, uma totalidade de atos psíquico-espirituais que revela um novo aspecto da realidade das coisas. (GIL FILHO, 2012, p. 53)

Esse construto simbólico é projetado para manifestar a relação entre “oprimido e opressor”, caracterizada pela ausência de memorialidade/identidade de lugares despovoados e isolados do Brasil. A presença da geografia do sertão, portanto, torna-se simbólica de uma configuração que envolve dominância e poder. Para sobreviver à vida hierarquizada e opressora gerada pelo homem social, o sujeito do sertão vale-se da razão e da consciência do jogo de base econômica e cultural. Assim, a carga simbólica do sertão se transfere transcendentalmente da paisagem do semiárido ao silêncio e injustiça como razão de ser da natureza sertaneja.
Tanto nos personagens de Ramos como de Torres existe uma vergonha eminente em expressar as ideias e as palavras; uma culpa sobre a exigência do direito de ser. É comum nesses personagens a expressão de sua subjetividade através de gestos, sons e imagens: “Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito” (RAMOS, 2002a, p. 63). Na circunstância de desigualdade social implantada pelo projeto político e cultural brasileiro, torna-se ideal que o nordestino seja um sujeito tímido, subalternizado, sem voz ativa para as situações enfrentamento ou argumentação. Como forma de denúncia, para além desses dois livros, a representação nordestina é baseada por esses arquétipos. Isso será retomado por Clarice Lispector na protagonista Macabéa em A Hora da Estrela (1998), por exemplo. Trata-se de um lugar-comum nas literaturas que projetam essas identidades.
No entanto, por outro lado, esse emudecimento pode ser quebrado por momentos de alta imaginação, interioridade e introspeção, como apontado no capítulo “Inverno”, quando Fabiano conta histórias aos meninos, se empolgando das próprias façanhas, expressando atos não-verbais num contexto sem a ameaça da disputa de poder. De modo geral, torna-se evidente a luta pela superação das amarras culturais que reprimem os sujeitos sertanejos na literatura brasileira. Segundo Emílio Pontes, sobre o final do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945)

Não existia, de fato, uma preocupação com o desenvolvimento regional. Apesar da existência de um órgão permanente para tal, havia um descaso do Governo nos períodos entre secas [...] as práticas políticas de assistências setoriais classificadas... “políticas públicas distributivas” que reforçavam relações dos poderes central e local e se materializavam na figura do “coronel”, [...] o que vai ser conhecido como “indústria da seca”(PONTES, 2010, p.35).

Como foi contextualizado, o nordeste foi deixado a mercê de um grupo seleto de latifundiários, os quais administrariam o poder e a economia local, retendo os maiores benefícios da açudagem e da mão-de-obra. Como consequência dessa situação de desigualdade social, os nordestinos praticam a diáspora. A vida do retirante em Vidas Secas é a soma da exigência do meio, que impõe no sertanejo uma série de privações, mudanças e movimentos de interioridade. O que fazem essas narrativas é denunciar o abandono e ressaltar a desigualdade, que não decorrem apenas do meio, mas também do homem:

E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? (RAMOS, 2002a, p. 121)

A família quase não tem bens, mas Sinhá Vitória sonha com uma cama mais confortável, objeto que não poderia acompanhá-los na migração e, portanto, se tornaria um fardo. São anseios, de uma personagem, introspectiva, que mostram uma vontade de mudar a realidade, de sonhar com um futuro diferente. Ela difere, portanto, de Fabiano, que não vê horizonte de mudança, mas levado por ela os dois se sentem “metidos naquele sonho” (RAMOS, 2002a, p.126) de morar na cidade. A família migra para a cidade com o objetivo de fugir não só da seca e do abuso do poder, mas também da herança difícil do sertanejo, que é o abandono social.
Conforme André Scoville, em Essa Terra, “o retirante não quer simplesmente fugir da seca, quer fugir da pobreza.” (SCOVILLE, 2011, p.100). Enquanto Ramos flerta com a ideia de despovoamento e desintegração social do sertão, Torres focaliza o quadro político nordestino, figurando políticos cheios de promessas, as safras afetadas pela seca, o empréstimo bancário e a presença da dívida na vida do nordestino. A economia é um fator marcado pela figuração fundiária, que crítica à administração e a exigência dos bancos, levando muitos nordestinos sem condições de sustento.

(...), os homens do banco estavam apertando, iam tomar-lhe tudo. Entre o banco e o irmão, preferiu vender a propriedade ao irmão. Assim, pagaria a dívida do banco e ainda ficaria com um dinheirinho para abrir um pequeno negócio em Feira de Santana. (TORRES, 1976, p. 54)

A seca e o sertão, nesse sentido, aparecem como reflexo econômico em Junco. A palavra Junco, por sua vez, deriva do latim juncus, caracterizando uma família de plantas, da família juncaceae, que possuem o caule cilíndrico, aparência verde-escura e composição flexível, crescendo em solos úmidos, secos ou inférteis. Devido a sua flexibilidade e resistência foi utilizada para produção de embarcações de mesmo nome. Barcos esses construídos para guerra ou transporte de mercadorias pelos chineses no século XVI. Além disso, Junco aparece na mitologia bíblica referente à composição da Arca de Noé, atendida pelo homônimo “Arca de Juncus”. No município fictício, a cidade contém um pequeno boteco, algumas propriedades antigas e fazendas abandonadas. Apesar de ausente, a noção de interioridade sertaneja, habita a alma Junco, caracterizada como “um fim de mundo” avermelhado, marcado por um forte sentimento regionalista.

Vagaroso e solitária o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já s teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte. (TORRES, 1976, p. 20).

Assim, Torres utiliza a ironia para dizer o que o sertão não é a fim de desmistificá-lo. Na seção “Essa terra me Enxota”, o leitor observa a rotina e inquietações do pai. Percebe-se, neste trecho, que a seca não é parte orgânica da narrativa, uma vez que o pai banha-se na beira de um rio. Ao caracterizar Junco, o escritor aponta para sua falta de reconhecimento social. Assim, Torre utiliza algumas referências como estereótipos, lugares-comuns e clichês.

?cial no Brasil do século XX, Soares (2011, p. 3) pontua que

As representações, obviamente, são sempre sociais, por mais que possam aparentar naturalidade. Nunca são idênticas ao “real”, mas sempre produtos de uma luta simbólica protagonizada por agentes sociais, e necessariamente envolvem interesses concretos.

Considerando aspectos identitários e nacionais, compararam-se trechos das obras Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Essa Terra, de Antonio Torres, a fim de explorar a soria e o pensamento social. Caso contrário não consegue se identificar como região ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O desfecho de Vidas Secas serve como o prelúdio da história que acontecerá com Nelo, o filho predestinado de sua mãe. Vinte anos após sua partida, Nelo volta a Junco para cometer suicídio. Os personagens de Essa Terra seriam uma espécie de descendentes dos retirantes das décadas passadas. Ao explicar como os personagens chegaram a este município, sabe-se que a migração dolorosa estava ligada a grande seca de 1932. Na voz do pai de Nelo e Totonhim, a memória falha com a verdade sobre a história do lugar: “Essa praça jamais voltará a ser a mata braba que os vaqueiros (filhos e netos de João da Cruz) descobriram e desbravaram”. (TORRES, 1976, p. 100). O crítico narrador irônico intromete-se, no entanto, para relembrá-lo, que a parte da bravura dos vaqueiros não é real. “Não, Mestre. Foi o gado. O gado vinha procurando água, ali embaixo tinha uma lagoa. Os vaqueiros vieram atrás dos chocalhos”. (TORRES, 1976, p. 100).
Ainda assim, com condições menos desfavoráveis, a narrativa de Essa Terra expõe as apostas da família na educação e no progresso. A mãe de Nelo crê que, ao encaminhá-los para realizar o ginásio, os filhos terão mais oportunidades de vida. É por conta deste plano, contudo, que realiza um empréstimo cujo débito leva-os à venda da fazenda e à falência. Ao partir para São Paulo, Nélio transforma-se no símbolo de esperança para a família. A mãe coloca todas suas apostas de que Nélio irá ajudá-los a sair da situação de pobreza, no entanto, a vida na cidade, ao contrário do interior, não é exatamente como os baianos imaginavam. Em São Paulo, além do desemprego, da poluição e dos problemas com a esposa, Nélio é confundido com um ladrão por parecer um marginal.

Então eles me pegaram pelas orelhas e pelo pescoço e bateram minha cabeça no meio-fio da calçada.
? Confessa, é ladrão.
? Confessa, você é vagabundo.
? Confessa, você é marginal.
Eu disse não, não, não, não.
Não, não, não, não.
Não.
Marginal: uma avenida larga margeando o Tietê. (TORRES, 1976, p. 44)

O preconceito e a xenofobia aparecem como formas de opressão ligadas ao nordestino nessas literaturas periféricas. Durantesucede a dicotomia já trabalhada e herdada pelos românticos sobre “os colonizadores e os colonizados” na literatura. É no sertão que a brasilidade vai se desenvolver e com isso a possibilidade dndo que a urina fosse parte de suas memórias da infância. Sentia falta de sua mulher, não queria fracassar com sua mãe, tinha uma dívida com sua família e seu pai. E tudo doía.

Eles estão mijando na minha cara e eu estou tomando um banho no riacho lá de casa, as águas do riacho lá de casa vão para o rio de Inhambupe que vai para o rio Tietê, seguro um tronco de mulungu para não me afogar. [...]
Eles se aliviam sobre mim, me refrescam. Não podem bater e mijar.
Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore.
? Levanta, corno.
[...] Todo baiano é negro.
Todo baiano é pobre.
Todo baiano é veado.
Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos pra voltar para a Bahia.
[...] Não sei se estou em São Paulo ou em Junco. São Paulo é uma cidade deserta. (TORRES, 1976, p. 45-47)

Assim como Ramos, Torres irá explorar a profundidade psicológica dos personagens, expondo suas experiências e os sentimentos dentro desses espaços. O leitor passa a conhecer essa interioridade por meio dos flashbacks e de um narrador que expõe aquilo que esmaga as vozes dos personagens. Especialmente o processo de destituição de suas idenbretudo, por representar a oposição do progresso, da civilização [...]

O abandono institucional e a injustiça social são projetos culturais que justificam as ce Nelo não está levando a vida boa, que todos acreditavam. Após isso, o narrador nos joga ao ponto da história no qual Totonhim testemunha o corpo do irmão morto, o irmão amado pela mãe, que ainda não havia lhe reencontrado. Através do fluxo de consciência, o narrador introduz a mãe e o pai na narrativa. Ela é descrita pela personalidade forte, dura e até mesmo agressora quando o assunto é o futuro dos filhos. A desaprovação do pai sobre a migração de Nelo, por sua vez, é caracterizada por seu amor a terra e a vontade de ter todos os filhos morando e trabalhando juntos na roça.
Ao contrário da mulher, o pai se orgulha de nunca ter batido em nenhum de seus filhos. A tristeza, nesse momento, é sublinhada não apenas pela morte de Nelo, mas pela confirmação de o sucesso da migração ser questionável. Ao reconhecer o corpo do filho, o pai descobre que terá de bolar um caixão para Nelo que, em sua opinião, nunca deveria ter ido pra São Paulo. Há uma semelhança entre o personagem mãe e pai entre as obras Essa Terra e Vidas Secas. Assim como Sinhá Vitória, a mãe de Nelo deseja que seus filhos não enfrentem a dureza da vida do interior. No entanto, o pai sente-se traído, pois, a vida na cidade apenas lhe parece um saco cheio de promessas e dívidas. Aproximando-se assim de Fabiano, cujo sonho era permanecer no sertão.
Não é à toa que Essa Terra inicie com o suicídio de Nelo. Ainda que o autor reproduza a profundidade psicológica dos sujeitos, dinamizada por Ramos, ele se concentra em desconstruir a noção de isolamento natural, e interioridade clássica, produzida desde o sertão de Euclides da Cunha, justificando-a pela ausência de uma governabilidade justa, que efetivamente daria assistência para essas famílias em vulnerabilidade social. Após a morte de Nelo e o internamento de sua mãe, Totonhim decide viajar para São Paulo, porque embora ao longo do romance não manifeste afeto nem pelo sertão e nem pela cidade, migrar à urbe parece não ser uma escolha.

Mesmo sabendo que na metrópole não está garantida a resolução dos problemas de sua existência, ele se arrisca, pois ao menos na cidade grande sabe que há uma chance de melhoria, ainda que remota, e a possibilidade de dar um rumo diferente à sua vida, passando por novas experiências, desvencilhado de um destino determinado e previsível que teria no sertão. (GONÇALVES, 2013, p. 7)




3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em Vidas Secas, ao focalizar a identidade migrante e o emudecimento nordestino na participação de decisões do país, Ramos denuncia a realidade regional do nordeste, sublinhando o descaso da governabilidade política com a presença das injustiças realizadas por coronéis. Podendo ser considerada uma literatura underground, por não estar dentro de um cânone da literatura brasileira, a obra de Torres vai abraçar os ecos da literatura do sertão, principalmente aqueles que se referem aos desejos e a opressão dos personagens migrantes. Fazendo-o, Torres aponta, pela via de um debate sobre minorias, o esquecimento e a opressão social na formação da identidade nordestina. Outro aspecto importante é que ambos tiveram experiências periféricas ou de apoio às identidades reprimidas. Ramos, por exemplo, foi preso enquanto escrevia parte de Vidas Secas, durante a ditadura militar.
Ainda que Vidas Secas e Essa Terra sublinhem a fauna e a flora da região do sertão, suas funções pedagógicas extrapolam as noções geográficas. Em relação à palavra sertão, como ensina Filho (2011, p. 87), “O “Sertão”, ao que parece, tem a conotação de um só sentido (a interioridade), mas que se expressa na fisiologia da paisagem, numa diversificação, muitas vezes sem similaridade”. Movidos por esses agentes naturais, os personagens operam de reagindo ao meio, no entanto, mesmo quando não estão na seca e na fome, carregam-na simbolicamente por onde quer que estejam.
Um tópico caro às duas literaturas é o contexto de mudança. Enquanto em Vidas Secas, a migração é motivada pela ameaça da seca, em Essa Terra, a migração é acontece pela crença cultural de que o sul é a possibilidade de uma vida melhor. Pode se dizer que a energia motriz da mobilidade nas duas narrativas é o sonho, as expecttivas e os desejos dos personagens. Enquanto Sinhá representa a direção do seguir em frente em Vidas Secas, a mãe de Nelo, em Essa Terra, representa a esperança de que o filho possa vir a prover a família.
A utilização da carga simbólica do sertão parece ser o destaque em Ramos e Torres, uma vez que é por meio da fenomenologia do indivíduo que o sertão se manifesta, sublinhando sua esfera mítica, social e imaginada. O aspecto simbólico funciona para tratar a respeito do dilema social, pois compete a uma preocupação dicotômica entre a “aparência” e a “essência” das coisas. Outro aspecto simbólico é a dicotomia “civilização” e “natureza”, caracterizadas pela “animalidade” e “racionalidade”. Duas matrizes apresentadas como um construto social nos personagens de Vidas Secas, e, portanto, correspondente a uma agenda política de injustiça e abandono social.
A despeito de ser uma terra explicitamente amada por seus costumes, tradições e especificidades, é um interior rotulado como o passado da nação, os restos de questões coloniais que, para a autoridade e a política, já não fazem sentido serem repensadas. Esse amor pela terra, por exemplo, é o dilema do pai de Nelo, em Essa Terra, e de Fabiano, em Vidas Secas, cujas paixões pelo nordeste como lar lhes magoam pelo contraste com suas experiências sociais negativas.
O pensamento coletivo social brasileiro produz ressonância no enredo de Vidas Secas, particularmente em pontos em que o nordestino está no centro de um espaço de injustiça social com os “vazios” populacionais. Julgado pelas relações dicotômicas cidade-campo, progresso/atraso, civilização/natureza para assim ser destituído de sua subjetividade. A própria inversão dos dicotomias revela essa problematização, quando nem a natureza é e nem a cultura é retratada como amigáveis ao cidadão nordestino. Ameaçado pela seca, quando em isolamento, sem condição da produção para ter os meios de seu próprio alimento. Ameaçado pela cultura, por todos aqueles que possuem qualquer poder significativo para negociar o alimento ou as ideias. Nesse sentido, Graciliano aposta no emudecimento e na seca para efetuar a denúncia. Esse repertório simbólico confluirá tanto para a formação histórica do nordestino como coletividade quanto, por outro lado, para denunciar a corrupção política e o abandono institucionais da cultura nesse locus do sertão.
Torres, por sua vez, enfatiza a ausência da memória em cantos como Junco, onde nada de significante e histórico marca seu povo. Ademais, Junco nem se quer ganha status para ser sertão – embora seja. Embora Nelo esteja positivo e disposto a migrar, ele acaba enfrentando o desemprego na cidade grande por causa de sua falta de qualificação. Seu conhecimento restringe-se a pecuária e a agricultura, inserindo-se, nesse contexto, como mão-de-obra barata ou caindo na zona de desemprego, subalternizado nos grandes centros urbanos. Além do esquecimento cultural do povo nordestino, Torres vai apontar para alguns problemas sociais enfrentados por nordestinos na sua história migrante. Sua narrativa vai destacar a xenofobia, o preconceito e o exílio ligado a identidade nordestina.
Enquanto o desfecho de Vidas Secas revela a aura pessimista de uma possível mudança de vida, que indica um movimento circular e cíclico da estrutura da obra, a conclusão da obra Essa Terra também apresenta a migração, mas dessa vez de Totonhim, que sem a propriedade e a mãe, precisava seguir andando com medo do último fracasso humano: o sertão da vida.



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Title
SOCIAL ABANDONMENT, INJUSTICE AND FORGETFULNESS:
The northeast Brazilian’s identity and the hinterland in the works of Graciliano and Antônio Torres.

Abstract
Regarded as a study about minorities, Vidas Secas, by Graciliano Ramos, and Essa Terra, by Antônio Torres were compared seeking to comprehend the oppression of the northeast Brazilians’ identity. For this research, we read theories of representation of Hall (2006) and Cassirer (1992); the literary study Temposfuturos of Reis (2012); the study about the fiction and history of Brazil’s draught of Scoville (2011); the definition of counterculture proposed by Pereira (1986); and, at last, the identitary questions in Torre’s fiction of Preto-Souza (2019). Using images left in the cannon such as the draught and the poverty of Vidas Secas, the fiction of Torres can be understood as countercultural, as it problematizes the current system and the political status quo of the hinterland at the end of the 20th century. The work’s results showed that, while Graciliano bets on the silence and the draught, converging to the formation of the northeast Brazilian’s mythology and denouncing the political corruption and the institutional abandonment, Torres highlights the forgetfulness of the northeast cultural identity, among other social problems like xenophobia and exile related to the them.
Keywords
Hinterland; Graciliano Ramos; Antônio Torres; Northeast Brazilian