Chamada para trabalhos / Call for papers
[...] também é possível, e às vezes até mesmo necessário, um diálogo do pensar com a poesia, pois ambos possuem uma relação excelente, embora diferente, com a linguagem. A conversa entre pensar e poesia visa trazer à tona a essência [Wesen] da linguagem para que os mortais possam, novamente, aprender a habitar a linguagem (Martin Heidegger).
A citação acima, retirada dos textos publicados, pela primeira vez, em 1959 com o título Unterwegs zur Sprache (A caminho da Linguagem), revela o quanto o pensamento tardio de Heidegger resgata sua noção de linguagem enquanto “morada do ser”, aproximando o exercício daquele pensar genuíno ao de uma linguagem originária, a qual se revela como ποίησις (poesia/Dichtung). Assim, a literatura, enquanto linguagem artística, assume essa forma mais originária de descerramento (Erschlossenheit) da verdade do ser, despontando em sua relação íntima com nossa existência em seus mais complexos dilemas.
Nesta perspectiva, literatura e filosofia são duas manifestações convergentes a partir de vários prismas cujas raízes se encontram na Antiguidade: ainda que mitológicos, tanto os escritos sapienciais dos egípcios, por exemplo, quanto as narrativas dos povos ameríndios e orientais já revelavam uma visão filosófica sobre o mundo e sobre a condição humana; também há de se mencionar Platão, o qual lançou mão da linguagem metafórica, como aquela presente na alegoria da Caverna, e Aristóteles, cuja Poética é considerada uma das primeiras referências na sistematização da linguagem literária. Isso pode ser observado, igualmente, no mundo medieval, onde As Confissões de Agostinho, compreendida como obra filosófica, se dá como linguagem mística e poética, assim como os textos profundamente filosóficos (os Poemas Místicos) do poeta árabe Jalaladim Rumi. Na linha dessa prolífica perspectiva, o Zaratustra de Nietzsche tampouco deixa de ser uma obra de ficção; e A Náusea de Sartre se apresenta como um romance por meio do qual o filósofo francês constrói aspectos de seu Existencialismo. Não podermos deixar de citar, neste escopo, o filósofo polonês Roman Ingarden, fundamental no surgimento da Estética da Recepção, a qual, baseada no método fenomenológico husserliano, reposiciona a importância do leitor na experiência de recepção e fruição do texto literário.
Por outro lado, a arte literária, em seus mais distintos gêneros, também traz um discurso que auxilia na própria criação e disseminação do saber filosófico: podemos reconhecer, em O Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, um verdadeiro tratado filosófico/sociológico do Modernismo brasileiro. Da mesma forma, é possível dizer que A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector estabelece, através de sua forma romanesca, um painel de educação existencial.
Diante desse contexto, esta chamada para um número especial da revista Aoristo - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics (ano 2026) pretende reunir trabalhos de pesquisadores interessados nas variadas relações entre pensamento fenomenológico e literatura. Esperamos receber contribuições que, à luz da Fenomenologia, reflitam acerca da presença da linguagem literária em textos considerados filosóficos, e também o oposto: artigos que discutam sobre o fazer filosófico transfigurado em literatura. Além disso, são bem-vindos textos que reflitam a respeito da Fenomenologia e da Hermenêutica enquanto correntes da crítica literária.